Sendo Deus Onipotente, Criador de todas as coisas, é paradoxal pensar que possa existir uma relação entre o agir de Deus e a fraqueza humana. Mais difícil ainda para a nossa razão, é imaginar que Ele pode e quer habitar na fraqueza humana. Deus nos fez humanos, não anjos e nem deuses, mas, humanos e viu que era muito bom!(1)
O Senhor formou o homem do barro, não do ferro ou do ouro, nem de rocha ou do diamante, mas, do barro. O barro pode não ser valioso, mas, é o mais fácil de moldar. Precisa também passar pelo fogo para ganhar resistência.
Existe em nós esse ponto de fraqueza que funciona como um canal direto com o Senhor. É o ponto de encontro entre Deus e o homem. Ele, sendo o Todo Poderoso, quis manter intencionalmente esse ponto de ligação conosco, por amor, não para nos humilhar, mas para poder interagir com a nossa humanidade. Talvez seja esse o motivo da alegria de São Paulo em relação à sua fraqueza. Certamente ele descobriu esse segredo escondido na gênese humana e enquanto todos nós tentamos nos distanciar do “dom da fraqueza”, São Paulo faz o caminho inverso e corre ao seu encalço.
O próprio pecado de Adão e de Eva, já está ligado a essa vontade de ser forte. A desobediência dos dois, passa pela frase sedutora da serpente “vos tornareis como deuses e tereis conhecimento”(2). A frase da serpente teve efeito imediato em Eva, pois, despertou nela curiosidade. Existe no homem, um desejo natural, ainda que inconsciente, de se unir ao seu criador, mesmo que o homem negue esse desejo e essa inclinação original, é necessário ao homem unir-se a Deus, ou seja, é vital, e tudo que é vital exerce em nós uma força enorme que, quando não dirigida pelo Espírito de Deus, nos leva a caminhos tortuosos, nos distanciando ao invés de nos aproximar do Senhor.
No final das contas, queremos ser deuses(2). O desejo de independência, de liberdade, querer realizar grandes coisas, ter o nome escrito na história, é no fundo, um desejo de apoteose, ou seja, de ser divinizado, o que pode ser legítimo levando em consideração que o que Deus pretende é fazer-nos deuses por participação, sendo-o Ele por natureza, como o fogo que converte tudo em fogo (3), desde que esse desejo seja de imersão completa n’Ele, de modo que a natureza humana não é aniquilada, mas é totalmente impregnada da “substância” divina.
Esse fenômeno, por assim dizer, já o podemos contemplar na vida dos santos que alcançaram, não sem esforços humanos, mas sustentados pelo auxílio indispensável da graça Divina, essa união perfeita entre criatura e Criador, manifestada por exemplo, na vida daqueles santos que tinham o “poder” de dar ordens aos animais, aos elementos ou aos fenômenos naturais, assim como o fez o próprio Jesus ao dar ordens aos ventos e ao mar(4). Ele prometeu que faríamos as obras que Ele fez e coisas ainda maiores que Ele mesmo(5).
O plano original de Deus para nós era que vivêssemos essa perfeita união com Ele, a qual possibilita a ambos uma relação tão intimamente estreita e de modo tão inseparável que nos fosse possível confundir as nossas ações com as de Cristo e poder afirmar que já não vivemos, mas é o próprio Cristo que vive de maneira ativamente dinâmica em nós(6).
Depois da saída do homem do paraíso e da perda daquela união perfeita com Deus, o Senhor quando se manifestou material e visivelmente ao homem, foi quase sempre na forma de elementos que podem facilmente alterar o barro, ou seja, água, ar, fogo, vento, de modo a nos lembrar sempre da nossa origem para que não nos ensoberbeçamos e caiamos novamente na voz capciosa da serpente.
No entanto, herdamos a marca dessa queda original, e ressoa ainda para nós a voz enganadora do dragão que tenta de todas as maneiras fazer-nos comer do fruto da vaidade para transformar o que seria motivo de alegria e união, em motivo de queda já que temos o dom irrevogável do livre arbítrio. Porém, a aparentemente doce eloquência da serpente, esconde a peçonha letal de sua picada(7), e nós, por não termos a intimidade necessária com Deus, não tendo a capacidade de distinguir as vozes e entre o desejo de união com Ele e a soberba, somos envenenados pelo desejo de ser como deus, morremos e perdemos a comunhão com o Senhor, afinal de contas, Ele resiste aos soberbos(8). O que era o ponto de união foi tornado justamente o ponto de separação, pois, toda a obra do maligno é o contrário da obra de Deus. Enquanto aquele veio senão para roubar, matar e levar à perdição, Este veio para nos dar vida, e vida em abundância(9).
Podemos então afirmar que a fraqueza humana é na verdade um dom? Partindo do pressuposto que esse seria a porta que nos colocaria de forma direta em união com Deus, sim, a fraqueza humana é um dom, pois, não fosse assim, a fraqueza seria causa natural de condenação e decerto Deus não sendo acessível ao mal(10), não permitiria tal condição para a nossa perdição. Deus que é perfeitíssimo em tudo o que faz, criando o ser humano pelo beneplácito de sua livre vontade(11), viu que era muito bom, ou seja, sem defeito(1). Mas, por inveja o demônio introduziu a morte no mundo(12), aproveitando-se do dom do livre arbítrio do homem para tentar separar o Senhor de Sua obra mais sublime, o ser humano, de modo que ao mesmo tempo que o homem é objeto do amor de Deus, é automaticamente objeto de toda a inveja do maligno, o qual de modo inverso, quer ter a sua própria imagem e semelhança, não criando para si tendo em vista que não tem o poder de nada criar, mas, desfigurando aquele que é imagem e semelhança de Deus.
A fraqueza humana existe e isso é um fato. Existe, no entanto, para ser sustentada pela graça de Deus, ela é suficiente para alcançarmos a perfeição(13), e foi desejo Seu que assim se realizasse, sabendo que nada acontece que não esteja submetido à supremacia de Sua vontade e permissão. O sentido teológico da fraqueza humana reside enquanto essa cumpre o seu papel de ser canal e oportunidade profícua de união mútua entre Deus e o ser humano. Quando portanto, o homem toma consciência de sua fraqueza e descobre que ela pode ser para ele caminho eficaz de salvação por dar-lhe acesso direto à misericórdia do Pai, o mal perde força e dá lugar a uma teofania capaz de arrebatar o homem à presença do Altíssimo, de onde, após provar e ver quão suave é o Senhor(14), e o dulçor do Seu amor, não deseja mais se afastar por receio de perder a felicidade por tanto tempo almejada e agora já alcançada.
Outro ponto que nos leva a pensar a fraqueza humana como dom, é que o próprio Jesus ao vir ao mundo, não veio como Deus, nem como anjo, mas quis vir como homem. Ele quis provar dessa fragilidade humana em tudo exceto o pecado(14), para mostrar-nos que ela pode sim ser a nossa via de salvação.
Indubitavelmente São Paulo descobriu esse segredo, essa escada secreta de amor(15) que conduz o homem diretamente ao seu Senhor, e certamente por isso ele afirmou se regozijar de suas fraquezas, ao contrário ele, que havia sido treinado para ser forte e invencível, deixou-se vencer pelo amor Daquele a quem perseguia. Descobriu essa pérola perdida dentro de si, coberta de orgulho e tantos pecados, e fez dela o seu tesouro e sua fonte de força, fazendo-o trocar tudo pelo Tudo(16). Na vida de São Paulo, podemos contemplar todo o paradoxo dessa fraqueza que de tão forte que é, fê-lo abrir mão do próprio nome e de toda honra de outrora para viver dependendo total e exclusivamente do socorro divino à sua fraqueza. Quando teve a coragem de reconhecer que não podia, viu manifestar-se em sua vida toda a força de Cristo, e por isso, não teve outra atitude a tomar a não ser lançar-se para a frente deixando tudo para trás, a fim de experimentar da graça de Deus.
Quando ainda vivia pela sua própria força, encontrara apenas morte e desolação. Ao abraçar a própria debilidade em Cristo, encontrou felicidade plena. Foi preciso que a luz de Cristo rompesse as trevas do seu coração, para mostrar-lhe o quão miserável era a sua vida exterior e como dentro de si até aquele encontro no caminho para Damasco, só trazia morte e infelicidade. Trevas essas tão espessas que ao serem rompidas pela luz da Verdade ficou cego, mas, nunca teria enxergado tão bem como naquela ocasião em que a Salvação entrara em sua casa e lá fizera morada.
No mundo hodierno é humilhante ser fraco, especialmente em relação à vida ascética. É uma violência ao ser humano atual assumir que não tem força por si e que necessita de auxílio para viver. Aprendemos que é urgente ser independente e que não podemos depender de ninguém – e isso inclui Deus- para ser feliz. Aprendemos que é retrógrado seguir mandamentos e viver dependendo de um Deus que para muitos não passa de uma lenda criada para satisfazer anseios de pessoas não evoluídas intelectualmente.
Em um mundo que se exclui Deus, exclui-se automaticamente tudo o que está a Ele relacionado, inclusive as pessoas. Cria-se um deus de conveniência, que nada exige e que deve servir a quem o segue, atendendo aos seus caprichos.
Na afirmação que é na fraqueza que se revela toda a força de Cristo(17), São Paulo nos faz um convite ousado, desperta um desafio vivido por ele mesmo, mas que já tem garantia de sucesso total feita pelo próprio Jesus ao afirmar que o Reino dos Céus é dos violentos(18).
A fraqueza humana não traz em si a possibilidade de ser canal de salvação a não ser quando está apoiada e fundamentada na graça santificante do Espírito. Se, contudo, descobrirmos na fraqueza a mesma alegria que São Paulo, poderemos dar passos mais concretos e firmes em direção ao Senhor. Ser fraco não é condição imediata para chegar à perfeição da união com o Senhor, porém, se em Cristo a acolhermos e depositarmos, então aí sim, ela será uma escada secreta(15) por onde podemos ter acesso ao Seu coração.
Importante também é entender que, apesar de caminharmos todos para um único objetivo, a eternidade, cada um tem o seu caminho próprio e ninguém poderá tomar o caminho do outro, ainda que eu siga práticas ascéticas vividas pelos santos ou amigos próximos e por mais que as situações externas sejam semelhantes, os processos interiores são e agem de formas diferentes de acordo com a vida interior e a consciência de cada um tem de si e de Deus. Portanto não é a fraqueza conditio sine qua non para atingir a perfeita união com Deus, ou seja, a santidade, todavia pode sim, para quem desejar, se tornar um caminho proveitoso de cura e salvação, desde que tenha como fim último unir-se ao Senhor.
Descobrir o próprio caminho de união perfeita com Deus, é inerente ao seguimento de Jesus, e mais, é indispensável, pois, sem conhecer o caminho não poderemos percorrê-lo, e essa descoberta em nada pode afetar a fé como fundamento de realidades que ainda fazem parte porvir, tendo em vista que vivemos o já e o ainda não, mas, esse conhecimento dá-nos ao contrário, a possibilidade de exercitar a fé com ainda mais firmeza para prosseguir decididamente no caminho da salvação e permitir ser recriada em nós a imagem e a semelhança de Deus pela e para a qual fomos criados(19) roubada de nós pelo pecado.
A fraqueza humana é enfim como a manjedoura. Sem Jesus é vazia e serve apenas aos instintos e aos animais. Com Jesus é santificada e santificadora.
“Mas ele me disse: “Basta-te minha graça, porque é na fraqueza que se revela totalmente a minha força”. Portanto, prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que habite em mim a força de Cristo. Eis por que sinto alegria nas fraquezas, nas afrontas, nas necessidades, nas perseguições, no profundo desgosto sofrido por amor de Cristo. Porque, quando me sinto fraco, então é que sou forte.” II Coríntios 12, 9-10.
Referências
- Gênesis 1,31;
- Gênesis 3, 15;
- São João da Cruz, Ditos de luz e amor nº 106;
- Marcos 4, 39. Mateus 8, 26. Lucas 8, 24;
- João 14, 12;
- Gálatas 2,20;
- Romanos 6,23;
- Tiago 4,6.
- João 10, 10;
- Tiago 1,13;
- Efésios 1, 5;
- Sabedoria 2, 24;
- Mateus 5, 48;
- Hebreus 4, 15;
- São João da Cruz. Noite Escura lida hoje, o décimo degrau.
- Mateus 13, 45;
- II Coríntios 12, 9;
- Mateus 11, 12;
- Gênesis 1,26-27.
Fonte:
Fabrício Alves
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